sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

"Tarde em Itapuã"(Vinícius/Toquinho)

Raimundo Poeta e seu grande amigo, o poetinha Vinícius de Moraes


"Tarde Em Itapuã"
Um velho calção de banho,
Um dia pra vadiar,
Um mar que não tem tamanho
E um arco-íris no ar.


Depois da Praça Caymmi
Sentir preguiça no corpo
E, numa esteira de vime,
Beber uma água de coco, é bom...


Passar uma tarde em Itapuã,
Ao sol e mar de Itapuã,
Ouvindo o mar de Itapuã,
Falar de amor em Itapuã.

Enquanto o mar inaugura
Um verde novinho em folha
Argumentar com doçura
Com uma cachaça de rolha.


E, com um olhar esquecido,
No encontro de céu e mar
Bem devagar ir sentindo,
A terra toda a rodar, é bom...


Passar uma tarde em Itapuã,
Ao sol e mar de Itapuã,
Ouvindo o mar de Itapuã,
Falar de amor em Itapuã.


Depois sentir o arrepio
E o vento que a noite traz
E um diz-que-diz macio
Que mora nos coqueirais.

E nos espaços serenos,

Sem ontem, nem amanhã

Dormir nos braços morenos
Da lua de Itapuã, é bom...


Passar uma tarde em Itapuã,
Ao sol que arde em Itapuã,
Ouvindo o mar de Itapuã,
Falar de amor em Itapuã.


Lançada em 1972 no disco "Vinícius, Toquinho e Marília Medalha" (RGE-Fermata), embora tenha sido composta um ano antes, "Tarde em Itapuã" é um clássico absoluto da nossa MPB. O engraçado é que a praia que serve de inspiração não é exatamente Itapuã, mas a Praia dos Coqueiros, localizada na divisa entre Piatã e Plakafor.
Na verdade, há um pouco de cada nesta história. Algumas pessoas moradoras da antiga Rua J de Itapuã (hoje Rua da Poesia, onde também reside Juca Chaves), onde viveu Vinícius entre 1970 e 1974 - tempo em que ele foi "casado" com Jessy-Jessy - afirmam que o poetinha escrevera os versos admirando a praia de Itapuã da varanda de sua casa. Entretanto, uma versão mais fidedigna parte tanto da Jessy-Jessy quanto do Toquinho, de que Vinícius odiava a Praia do Farol (a verdadeira praia de Itapuã) e que fizera a música numa das suas muitas passagens pela Praia dos Coqueiros. Hoje, infelizmente, o local tornou-se uma região popularesca, cheia de barracas tocando som de péssima qualidade, com a areia e a água sujas, sendo que a sua noite é ponto principal de "pisteiras", termo pelo qual são chamadas as garotas de programa que vivem nas ruas.
Entretanto, voltemos para uma Salvador bucólica de fins de 1960 e início dos 70. Poucos sabem, mas nesta época, nossa cidade era tudo, menos evoluída. Com excessão do centro, o resto da capital respirava ares de província. Não existia Avenida Paralela, tudo era mato - havia apenas o projeto do Centro Administrativo. Pituaçu, Boca do Rio, Armação, Jardim dos Namorados e Jaguaribe eram chamadas de "subúrbio norte de Salvador". A Cidade Baixa era um completo lamaçal, sendo urbanizada apenas do Comércio a Igreja do Bonfim - a Avenida Tiradentes, outra via do local, era de terra batida, fato que acabou dando o seu nome definitivo: Caminho de Areia.
Não havia ainda para ninguém Cajazeiras, o mega-projeto de urbanização popular surgido em 1974. Bairros como Sete de Abril, Pirajá e Castelo Branco eram verdadeiras "cidades do interior", distantes mais de duas horas de tudo. A BR-324 não passava de uma via simples (hoje é dupla). Não existia Acesso Norte, você tinha que obrigatoriamente passa pela Barros Reis (recém-feita nos anos 60) e pelo Retiro (bairro afastado e pouco populoso na época) para entrar na recém-inaugurada Avenida Mário Leal Ferreira, conhecida como Bonocô - pois localizava-se no vale que dividia Brotas. Esta era um bairro bem simples, loteado dentro de uma fazenda, sem maiores atrativos. São Caetano e Pau da Lima eram outros dois bairros bastante estagnados e que cresciam quase que como distritos independentes.
Esqueça Iguatemi. Salvador possuia apenas dois shoppings, se é que podiam ser chamados assim: de um lado, o Shopping Largo do Tanque (na realidade, chamava-se Centro Comercial Largo do Tanque, a alcunha shopping só veio surgir nele nos anos 80) e, do outro, o Shopping Orixás Center, no Politeama, com umas quinze ou vinte lojas, mal estruturado e que hoje é um dos lugares mais adequados para se alugar roupas de festa a rigor ou casamentos. E, dizem os entendidos, point gay da cidade. Não ando por lá pra afirmar!
Dentro deste contexto, voltemos para Itapuã, um bucólico bairro de subúrbio, sem nenhuma sofisticação, com casas de veraneio de famílias melhores financeiramente que a maioria da população local, representada pelos pescadores que moravam pelas cercanias. Algo como a Barra no fim do século XIX.
Quando Vinícius por aqui chegou, procurou um lugar bastante afastado para morar. E Itapuã era o lugar mais indicado para isto. Tudo que ele queria era poder amar Jessy-Jessy, fazer seus poeminhas, receber seus amigos e, principalmente, degustar de whisky, amendoim e da sua banheira em um toillet repleto de imagens de bundas. Verdade!
É claro que, mesmo indo para um bairro afastado, a chegada de Vinícius a Salvador não deixou de ser um fato bastante comentado na mídia ainda provinciana existente na cidade. Para se ter uma idéia, embora tivessemos quatro jornais de grande circulação (A Tarde, Jornal da Bahia, Diário de Notícias e o recém-criado Tribuna da Bahia), existiam somente duas emissoras de televisão naquela que era a quarta maior capital do país em população: a TV Itapuã e a TV Aratu. Talvez este fator tenha sido até, de certa maneira, o responsável por fazer a visita de Vinícius ser bastante comentada. Há o caso, que inclusive tomou proporções nacionais, do poema que Vinícius fizera criticando o prefeito Clériston Andrade pela ausência de um poste de luz em Itapuã. Aliás, isto é típico das cidades provincianas e Salvador não perdeu, ainda hoje, este estilo. Tanto que até hoje alimenta o estigma de ser "um ovo". Qual bom baiano nunca ouviu a expressão "Salvador é um ovo, todo mundo encontra todo mundo". E olhe que temos quatro milhões de habitantes!
Quando Vinícius pensou em "Tarde em Itapuã", sua intenção era simplesmente poder homenagear aquele bairrozinho que o acolhera tão bem. O engraçado é que a música parece funcionar justamente onde Toquinho e Jessy-Jessy alegam ser a real inspiração. Quando você chega na região da Praia dos Coqueiros - logo após o SESC-Piatã e o Costa Verde Tennis Clube -, mentalmente já escuta a música ressoar na tua mente. O clima ameno do lugar, mesmo com todos os problemas da atualidade, dão a tônica daquele ambiente gostoso e "vagabundo" que Vinícius incita na sua letra (Um velho calção de banho/Um dia pra vadiar/Um mar que não tem tamanho/E um arco-íris no ar). Um colega meu do tempo em que fiquei na PM costumava dizer nas nossas apresentações do coral: "Isto é música tipicamente de velho cachaceiro". O pior que não deixa de ser verdade; mas, claro, no bom sentido.
Outro fato que ajudou bastante a evolução da letra foi a melodia imposta por Toquinho. Imposta sim. Poucos sabem, mas Vinícius ainda achava Toquinho meio "moço demais" para compor (embora, na época, ele já contasse uns 28 anos, tivesse experiência de festivais e fôra aluno do grande mestre Paulinho Nogueira). E o que deu? Uma harmonia tão bem feita, mas tão bem feita que não há quem consiga desvencilhar-se dela. Reza a lenda que Toquinho inspirou-se nos modos musicais dos "sambas da Bahia" de Dorival Caymmi e nos seus maneirismos para criar a composição. Aliás, é bastante engraçado perceber que muita gente confunde "Tarde em Itapuã", atribuindo a obra justamente a Dorival Caymmi. O que, justiça seja feita, seria válido, pois tanto a dupla Vinícius & Toquinho quanto o Dorival Caymmi são donos de uma herança rica da nossa música popular.
O refrão é de uma simplicidade tamanha e, ao mesmo tempo, de uma beleza incomensurável. Quando é cantado o Passar uma tarde em Itapuã/Ao sol que arde em Itapuã/Ouvindo o mar de Itapuã/Falar de amor em Itapuã, não existe ser humano no mundo que consiga dizer de envolver-se. Mérito novamente da bela parceria: enquanto Vinícius utilizou seu jeito simples de criar uma letra sem complicações ou papo-cabeça (fato que inclusive o levou a ser taxado de alienado e compositor de easy music), bastante emotiva e ausência quase total de verbos (note que a maioria dos versos estão escritos em orações reduzidas no gerúndio e no infinitivo), Toquinho aprimorou o nível do toque de teu violão, dando mais destaque ao instrumento nesta parte da canção. Parece-nos que o balançar do coqueiro é quem dita as trilhas da canção. Um compasso lento, mas que no refrão levemente aumenta. Parece-nos uma conversa de amigos num boteco, falando das virtudes dos "braços morenos da lua de Itapuã" e cantando em uníssono o doce refrão.
Quem também deu um toque todo especial a canção foi a belíssima cantora Marília Medalha, que a esta época já sofria o pão que o diabo amassou pela perseguição ao seu marido, o dramaturgo Isaias Almada. Aliás, que país este nosso, hein? Se por um lado valorizamos grandes cantoras como Clara Nunes, Elis Regina, Gal Costa e Maria Bethânia, por outro esquecemos cantoras tão quão ou até mais encantadoras, que poderiam ter tido um outro caminho no mainstream se fizessem certas concessões absurdas. Só para citar, temos Diana Pequeno, Maria Creuza(esta era a cantora favorita do Vinícius), a própria Marília Medalha, Cláudia, Maria Odette, Doris Monteiro, Joyce, Jane Duboc, Fátima Guedes, Zezé Motta... mas é isso, cada país tem a Barbra Streisand que merece. No nosso caso, a Ana Carolina. Argh!
A participação de Marília com sua voz grave e madura (embora fosse uma jovem de 29 anos) é de uma riqueza extrema. Graças a ela, sentimos um gostoso envolvimento feminino com a música, atmosfera que Vinícius sempre explorou e muito bem - apesar de notadamente machista e, de certa maneira, conquistador barato. Não são só os homens que vêem as virtudes de Itapuã; as mulheres também. De preferência aquelas maduras e independentes, personalidade que Marília adquire com vigor e paixão. O seu cachaça de rolha é uma das mais gostosas intervenções feitas por uma mulher numa canção cuja letra fora feita pelo Vinícius. Só tem uma que consegue superá-la, a Maria Creuza em "Eu Sei Que Vou Te Amar", justamente com a participação do poetinha Vinícius e lançada no mesmo 1972.
Deixo aqui, para download, esta belíssima canção, um dos marcos da nossa MPB. Com toda certeza, uma audição tão gostosa quanto sentir o arrepio e o vento que a noite traz, bebendo uma cachaça de rolha e dormindo nos braços morenos da lua de Itapuã. Boa audição!

Nenhum comentário: